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sexta-feira, 1 de maio de 2015

DOÇURA e DELEITE




Já havia alguns dias, talvez semanas, sei lá! Já tampouco me importava qualquer senso de cronologia linear, e, enfim, o que antes parecia apenas uma idéia solta, feito pipa avoada, de repente, tornou-se uma legítima experiência, de uma hora pra outra. Foi bem ali, diante daquele fogão velho e sujo, tentando temperar qualquer cotidiano nutritivo que, quem sabe, me lambuzaria de surpresas algum dia. E aconteceu justo enquanto eu me recordava do exato momento em que aquela famosa metáfora das borboletas no cabelo, aquelas que nascem do couro cabeludo num dos famosos contos do Caio Fernando Abreu, me havia vindo à mente como num dèjá vu, uma coisa toda inexplicável e entregue à arrepios e calafrios, mas ainda assim toda linda. Puramente inefável e linda.

Durante esse mesmo episódio epifânico, eu me via sentado ao lado de Manoel de Barros enquanto remexíamos terra molhada à beira de um rio. Brincávamos, em silêncio, de moldar arquétipos complexos em figuras comuns e fingíamos que tudo aquilo não passava de imprudência ou mesmo teimosia metafórica. Hipocrisia inofensiva, sim, mas que não passava despercebida. Clarice Lispector, que se disfarçava no azul da tarde, toda emaranhada por entre cabelos de nuvem, desenhou a palavra POESIA no céu de nossas cabeças, caçoando impiedosamente da rima retórica que parecia tão óbvia quanto a minha capacidade de enlouquecer paisagens. E tudo isso pode ser que não tenha precisado nem sequer de um segundo pra acontecer. Ou então pode ser que tenha levado toda uma vida pra ser precisamente inigualável e singular tal qual fora. Pouco importam as tentativas inúteis de traçar parâmetros para os mistérios do tempo agora. Só sei que foi como se o sempre nunca tivesse precisado existir de tão inescapável que era a sua intrinsecalidade...

E eu senti. Tudo. Senti mesmo, com precisão sensorial, e extra-sensorial. Detectei cada nuance daquela experiência, aquele inédito cotidiano que se descortinava de dentro de si numa metalinguagem misteriosa. Eu explico:

De repente minha coluna vertebral inteira era composta por felpudas mariposas. Faziam parte de mim, tanto quanto fazia aquela cozinha, o par de chinelos aos pés e aquele fogão velho, a janela bucólica em contraste com a vista escandalosa de tirar o fôlego; eu era todo aquele cenário e tudo que aquele instante continha, só pela simples consciência de pertencê-lo. E eu sentia, sabia, entendia: tudo aquilo sempre fizera parte de mim, mas só mesmo então eu pude compreender com clareza. E cada movimento que eu fazia, por mais sutil que fosse, era acompanhado pela vibração de inúmeros ruflares de asinhas coordenadas, asinhas vertebrais e suas anteninhas sensoriais. Não dava pra não sorrir espaçosamente ao perceber aquela presença.

Eram cócegas em correnteza fantasiadas de invisível. Discretas, mas desfilando todas prosas num carnaval de sentidos inventados, remendados, reciclados e conectados por teias de ilusão em intenções reaproveitadas. Toda essa alegria não seria perceptível não fosse a coleção de desencantos armazenados pelas células de todo o meu corpo. Remendos editados pela graça mnemônica das lembranças, magia que é o solvente universal das amarguras empedradas, imprescindível à homeostase de um livre-arbítrio sustentável: livre e arbitrário.

Foi logo então que pude perceber que havia um beija-flor no meu peito, pulsando alegria pelas minhas artérias onde antes eu acreditava existir nada mais que um músculo cardíaco. E tudo começou a fazer muito sentido, a infinita sede por doçura que sempre senti em meu coração, era por isso, néctar é o alimento fundamental desses incríveis pássaros.
E uma série de epifanias me ventavam desencadeando novos entendimentos e percepções, tudo encaixando perfeitamente com minha maneira particular de apreender a experiência de estar vivo, tudo se conduzindo em um mesmo fio de concordância e correspondência entre o agora e a enciclopédia de experiências memorizadas e condensadas no entender ser quem sou.

Em minhas mãos comecei a sentir, e pude ver que cada dedo era um peixinho de rio... é por isso que minhas mãos se sentem tão bem embaixo d'água, podem ficar horas submersas! E meus ouvidos, dois camundongos ultra sensíveis e melindrosos. Meus pés, nadadeiras disfarçadas de tatu, ao mesmo tempo navegando e me enraizando por onde quer que eu vá. Em minha garganta um canário romântico e por vezes um tanto quanto vaidoso, meus joelhos, velhas tartarugas marinhas procurando nas inúmeras cicatrizes em seus cascos pistas para reencontrarem a praia que resguarda suas infâncias ainda intactas. E os meus pulmões, respiro florestas inteiras, o tempo todo ventando por entre galhos, folhas e segredos... Minhas pernas fortes por natureza obviamente que golfinhos surfistas.

Meus olhos, sim, ah... Meus olhos inquietos e indiscretos! Tantas e tantas coisas são capazes de inventar... Metamorfoses diárias. Mas que sempre no crepúsculo, teimosamente saltam de meu rosto pra voar em celebração, ocupando a liberdade da atmosfera, aquelas andorinhas empolgadas e felizes, que acreditam abraçar o horizonte com curvas e imaginação. E os meus pensamentos também, quase todos, ao final do dia, adoram se reunir fazendo uma estrada no céu, ora fragatas, ou tucanos, gaivotas, biguás... ora araras, pombas, maritacas, atobás... Mas sempre se reunindo para encontrar aonde, no infinito de cada paisagem, formarão juntos mais algum deslumbrante enfeite.

Há quem nem se saiba
e nem nunca se aproveite.
E olha que ainda há também
quem acuse de loucura
toda essa doçura
que é o meu melhor deleite:
meu lar doce lar; meu lar doce deleite!