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sábado, 28 de fevereiro de 2015

JARDIM DE INSTÂNCIA








Sábado eu esqueci completamente de colocar néctar para os beija-flores. Só fui deitar muito tempo depois que o sol se levantou. Tive que trabalhar a tarde e a noite toda. Quando terminei de fazer o jantar já nem era mais sábado, e eu não havia sequer tido uma pausa para almoço. Eu estava visivelmente exausto por fora. O corpo pedindo repouso ao longo do dia todo. E aquele macarrão simples mas sofisticadamente delicioso me convidando para uma cesta pós refeição.

Eu queria dormir sim. Dormir muito. Por longas e intermináveis horas. Casulo de sono enrolado em lençóis de utopia e travesseiros sonha-dores. Providencial, aquele domingo traria enfim o ócio e o silencio necessários para um sono revitalizante. Todavia foi justamente o silêncio que despertou minha vontade de ficar ao mesmo tempo quieto e atento. Como tocaia e meditação reunidos para capturar os pensamentos mais ariscos e fugidios.

Fui para o quintal munido de um velho caderno sem capa e aquela caneta gostosa do curso de paisagismo. O chão molhado pela mesma chuva que havia lavado toda a tensão do dia enquanto eu subia a ladeira empurrando minha bicicleta na volta do trabalho. Refrescante e tão providencial quanto um domingo. No ritmo dos passos incertos e escorregadios decidi aceitar cada pingo. Estava mortificado pelo cansaço mas me sentia vivo e presente, presente e infinito, infinito e passageiro: cometa diante de um sol.

A rua tão vazia. Fiquei admirando aqueles paralelepípedos enquanto seguia acompanhando o trilho do bondinho. Amava cada um deles, os infinitos paralelepípedos. Devaneava imprudentemente com a passagem deles abaixo de meus pés, me permitindo enxergar em cada retângulo de pedra uma cena representando algum momento importante de vida. Mosaico de vídeos vivos mas quase sem cor ou som. Apesar da presença constante e bem definida dos trilhos me conduzindo na direção certa, enquanto via naquelas rochas as minhas memórias reunidas, não havia uma sequência linear nelas. Impressões de muitos passados, junto com diferentes convicções sobre futuros outrora imaginados, se emaranhavam como num mural de fotos de algum quarto de adolescente da década de 90.

Era o mural de um antigo jovem que ainda me habita timidamente, com sua ingenuidade crônica e seu imprudente excesso de sonhos. São tantos, que misturados, não conseguem ser organizados em metas e objetivos bem estabelecidos. O desejo é vital e por isso é também efêmero. Era uma espécie de retrospectiva de futuros que não aconteceriam mais. Ficariam em suspenso ao longo da linha do tempo. E por não terem de fato passado iam acompanhando aglutinados ao redor do foco do ponto presente. E ao longo do trajeto fui entendendo que aqueles rochedos do passado é que garantiam a estabilidade da direção daqueles trilhos enquanto iam os espremendo como que magneticamente.

Uma rua inteira de paralelepípedos. E eu tendo que fazer muita força o tempo todo porque a inclinação da ladeira era tão inescapável quanto a dor dos sonhos que não se realizam. Tudo o que a gente resiste simplesmente persiste. Insiste em permanecer até que seja feliz o que está triste.

Madruguei em tocaia, investigando aquela rua que agora mora embaixo dos meus pés quando estou avançando vida acima. Antes de deitar os pensamentos no travesseiro apurei bem aquela dura epifania. Palavras, que rabiscadas num caderno qualquer, guardavam aquele sentimento indigesto finalmente no passado. O alívio chamava o sono...

Não coloquei o néctar para os beija-flores. Mas sorri, leve e naturalmente. A palavra domingo ensolarando um delicioso repouso em meu peito. É que mesmo tendo me esquecido por completo, com sorte recebi a abençoada visita de um deles, os beija-flores. É que ao redor haviam flores, várias, desabrochando por todo o jardim...

Uirá Felipe Grano Gaspar – 13-12-2014 – Santa Teresa – Rio, RJ

AQUI É O LUGAR MAIS PERTO




O que está escondido
ocupa espaços que nem conhecemos
E no ato das decisões de coragem
vêm à tona tudo o que formos capazes de enfrentar e receber­
Muitas vezes o sofrimento tenta atrapalhar os passos
ao se preocupar tanto com as pegadas


(tão inevitáveis quanto a força da gravidade ligando você ao planeta Terra
e à todos os seres que nela vivem e os incontáveis astros movendo
numa mesma onda de propagação, enfim:

Universo [que de dentro se der r Ama] ao redor.)

Mas é no caminho que,
degrau após força,
superação após aceitação
está toda a graça e encanto ofertados pelo mundo

E a despeito da impressão em cada pegada
a realização acontece quando a energia que move
movimenta do coração o seu sentido maior
sentir do agora,
pois onde há vida, há calor, há dor
mas sobretudo há o Amor
que o movimento faz alimentar

e não é o prêmio no final da caminhada
que o fará rico, essa será somente a estrada
a riqueza de cada paisagem, e olhares
e pessoas que foram encontradas
Não existe mais rápido, nem mais curto, nem mais certo
por onde caminhamos é só o que levamos:
O que estamos; que expressamos nosso eu-esperto
E se a cada dia nos sentimos de algum modo mais longe
Saibamos cá no hoje que o aqui é o lugar mais perto

e para lidar com tamanhos desconhecimentos
e tanto susto diante dos mistérios da vida e do mundo
há apenas uma orientação infalível que alerto:
Age na intuição para ouvir a si mesmo:
Felizes nós os de coração aberto

Uirá Felipe Grano Gaspar 
Ibitipoca – MG (01-01-2015)